sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Direito de ser mãe





























Edição 44 - Revista Sentidos


Direito de ser mãe


 


 


Ao tomarem a decisão de ter filhos e assumir mais um papel - o da maternidade -, mulheres com deficiência descobrem uma alegria única, que não pode mais ser negada a elas


Reportagem: Adriana Perri


Foto: Fabio Braga


Inserida em: 19/12/2007















Flávia e Pedro curtem os filhos gêmeos, Mateus e Mariana, de 4 meses


A jornalista Flávia Cintra, 34 anos poderia ser uma mãe como qualquer outra. Apaixonada pelo advogado Pedro Corradino e bem-sucedida profissionalmente, há dois anos ela achou que era hora de formar família. Mas a decisão de Flávia de ser mãe gerou surpresa. Mais até: dúvidas sobre sua capacidade de gerar uma criança e, depois, de assumir a maternidade. O motivo? Ela é tetraplégica.
De fato, a gravidez de mulheres que têm essa condição ainda é pouco comum. E a gestação, é verdade, requer atenções extras - mas lesão medular não as impede de ter filhos.













Quando Flávia foi à primeira consulta com o obstetra, chegou com uma longa lista de perguntas. Não teve chance de fazê-las. Antes mesmo de examiná-la, o médico aconselhou que aguardasse três meses para ter certeza de que a gravidez evoluiria. "Eu estava ali como qualquer mulher que engravida pela primeira vez", recorda Flávia. "Ele disse estar preocupado com a minha situação e teve o cuidado de baixar minhas expectativas. Depois de meu acidente, porém, aprendi que médicos têm uma especialidade e nem sempre conhecimento de outras. Por terem limites, podem ter preconceitos. Uma pessoa mais frágil, no meu lugar, sairia dali devastada."

Situação semelhante aconteceu há 20 anos com a deputada Célia Leão, 52 anos, paraplégica, quando decidiu ter filhos após três anos de casamento. O que demonstra que, apesar dos avanços sociais e científicos, o tempo não mudou alguns conceitos - e preconceitos. Célia consultou cinco obstetras, em São Paulo, antes de encontrar o que denomina "fantástico". Três deles a aconselharam a não engravidar, "por causa dos riscos". Dois foram taxativos: afirmaram que ela não poderia. "Sempre fui teimosa e procurei mais uma opinião", conta Célia. "Ele pediu alguns exames e disse que nós dois - meu marido, Daniel, e eu - estavámos bem e que não havia nenhum impedimento." Era tudo o que Célia precisava escutar. Menos de um mês depois, engravidou do primeiro filho, Rodrigo, 20, que cursa o segundo ano de medicina. Depois, teve Diogo, hoje com 17, e Stephanie Vitória, de 13. Todos de parto normal, sem indução ou outro artifício. Tudo natural e planejado para não conflitar com o desenvolvimento da carreira política.













Célia e Daniel com os filhos mais novos Diogo e Stephanie


"Eles cobram com jeitinho da vida que deixa a mãe muito tempo fora de casa", conta Célia, que está no quinto mandato como deputada estadual, em São Paulo. Em meio à nossa conversa, o celular dela toca. Célia muda o tom da voz e sorri quando percebe que é um dos filhos, Diogo, recomendando que a mãe não esqueça de levar um filme que precisa assistir para um trabalho. "Está vendo?", diz ela, "estou sempre disponível como mãe. Eles são as grandes alegrias da minha vida. Nada me deixou mais realizada."

Célia tem grandes conquistas no currículo: foi a primeira deputada eleita por seu partido, em 1990, e a mais votada entre todos, em 1994, em um cenário político dominado por homens. Na ocasião, fez campanha grávida. Stephanie, que nasceu poucas semanas depois do pleito, ganhou Vitória como segundo nome por esse motivo.













Célia não teve nenhuma complicação nas gestações. Nem infecção urinária, que é comum na gravidez e um risco maior para quem tem lesão medular. Já Flávia contraiu uma no quinto mês, que a assustou, mas que foi contornada sem traumas. Escaras, muito comuns também por causa do aumento do peso, Flávia preveniu com uma almofada de ar especial - e cara - que era calibrada todo mês por meio de uma tecnologia computadorizada disponível na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), que mede a pressão e ajusta a almofada.

EM CASA, ESTRUTURA PARA CUIDAR DOS BEBÊS
A fisiatra Maria Eugênia Casallis, que trabalhou na reabilitação de Flávia 15 anos antes, também acompanhou sua gravidez na instituição com este tipo de apoio, junto com a obstetra Miriam Walligora - que explica as particularidades da gestação de mulheres com deficiência na reportagem de Saúde desta edição. "Só senti desconforto no final, quando a barriga estava grande e era dificil encontrar posição. Nós três não tinhamos acordo!", conta Flávia. "O mais dificil foi perder a autonomia. Na medida em que eu ficava mais pesada, as transferências ficavam perigosas." Ela engordou 14 quilos e os bebês nasceram com 33 semanas, dentro do esperado para gêmeos, e já foram para o quarto com a mãe sem precisar de outros atendimentos neonatais.













Felipe e sua Mãe, Sueli Ramalho Segala


Em casa, Flávia organizou uma estrutura para suprir as atividades que não consegue realizar sozinha. "Conto com a ajuda de uma babá para dar banho, vestir as roupinhas - com aqueles minibotões impossíveis de fechar com minha mão de tetra -, colocar e tirar do carrinho... Mas noto que à medida em que eles vão crescendo, vou conseguindo fazer mais coisas já que estão mais firmes e menos frágeis." Ela descobriu que a ajuda é necessária e que as limitações físicas não a impedem de ser mãe plenamente. "A babá me dá suporte operacional, mas sou eu quem sabe como é a carinha que a Mariana faz quando tem cólica, a expressão do Mateus quando quer fazer cocô, quando reclamam porque caiu a chupeta ou querem colo." É a mamãe Flávia, a bordo de sua cadeira de rodas, quem controla o horário das mamadas, da troca das fraldas, do banho e o que cada um vai vestir. Agora, que os bebês têm 4 meses, Flávia vem retomando aos poucos a carreira, com a ajuda da babá e do marido, que colabora em tudo, como reza a cartilha do pai moderno e de mulheres cada vez mais independentes e ativas profissionalmente.

Se nos grandes centros uma mulher com deficiência grávida já causa admiração, no interior a gestante vira sensação. A pedagoga Antonia Aparecida da Silva, a Cida, 43 anos, cega desde os 3, que o diga. Ela vive em Montes Claros, norte de Minas Gerais, cidade de 330 mil habitantes. Conheceu o marido, Luiz Marcos, na faculdade, começaram a namorar e casaram-se depois de seis anos. Cida afirma que Luiz teve muita coragem para namorar e casar com uma mulher com deficiência visual em uma cidade pequena. "As pessoas não acreditavam que iríamos nos casar. Quando tive o meu primeiro filho, Igor Matheus, recebia visita de mais de 30 pessoas por dia. Iam conferir se ele era deficiente também e se eu sabia cuidar dele." Com o passar do tempo, isso deixou de ser novidade e como Cida foi trabalhar na Secretaria da Educação e Esporte do município, passou a ser mais respeitada. "Não tenho medo de desafios. Chefio a Coordenadoria de Apoio à Pessoa com Deficiência e sou professora de braile. Trabalho para que outros deficientes não enfrentem as mesmas dificuldades que sofri para estudar." Cida ainda teve mais dois filhos: Iury Marcos, 7, e Rayssa Maria, de 6. "Quando eles nasceram, tudo estava mais fácil. Trabalho o dia todo, mantenho uma empregada em casa e concilio meu tempo para dar assistência às crianças. Desejo que se orgulhem da mãe e não vejam a deficiência como uma barreira."













Cida rodeada pelos filhos Yuri, Rayssa e Igor Matheus


FILHO É ÚNICO OUVINTE EM FAMÍLIA DE SURDOS
A deficiência não foi barreira para a completa integração da família da intéprete e professora de Libras Sueli Ramalho Segala, 43 anos. Surda, ela não sofreu com o preconceito na gravidez. Seus conflitos começaram quando Felipe nasceu. Toda sua família é surda e ele foi o primeiro ouvinte depois de três gerações. Apesar de o pai não ser deficiente, durante o pré-natal o médico afirmou que a chance de o bebê nascer surdo era de 95%. "Foi uma surpresa quando percebemos que ele escutava. Perguntei à minha mãe como eu cuidaria dele", conta. Quando o garoto fez 2 anos, o casal se separou. Sueli e Felipe foram morar com os pais e o irmão dela. Assim, o menino cresceu em meio à Língua Brasileira de Sinais e a cultura surda. "A primeira palavra que falou foi em sinais: mamadeira. Em português falado, ele chamou o pai. Compreendeu desde pequeno como era a nossa comunicação." Felipe, hoje com 23 anos e cursando o 6º semestre de administração de empresas, chegou a desejar ser surdo como a mãe, os avós e o tio. "Ele se sentia diferente da família, mas superou isso e convive bem com surdos e ouvintes. Muitos surdos que o conhecem não sabem que ele ouve, já que é fluente nas duas línguas." Felipe faz bicos como intérprete da Libras, unindo dois mundos com línguas e cultura diferentes.

Conforme afirma a psicológa Ana Rita de Paula, que também tem deficiência, no livro Sexualidade e Deficiência: Rompendo o Silêncio (Expressão e Arte Editora, 2005), a maneira como a deficiência é compreendida socialmente acaba causando dificuldades no desempenho dos papéis sociais. "A sociedade contribui para a diminuição da auto-estima quando propaga preconceitos segundo os quais esses indivíduos são incapazes de cuidar de si e, portanto, não estariam capacitados para cuidar de uma família." No entanto, exemplos como os apresentados nesta reportagem comprovam que são capazes de formar um lar e cuidar bem da prole. Limitações física, sensorial ou intelectual não são impedimentos ao amor e à dedicação materna. "Li que ser mãe é ter o coração pulsando do lado de fora do corpo. Esta é a definição mais exata que encontrei para descrever meu sentimento desde que os bebês nasceram", diz Flávia Cintra.